O presente resumo, faz parte integrante do Livro CULTURA E ARTES DA PESCA TRADICIONAL NO RIO TEJO, EM ORTIGA – MAÇÃO, tendo sido pelo autorizada pelo seu autor a presente publicação.
Toda a redação, foi retirada do original e mantida.
Ficha Técnica
Título da obra: Cultura e Artes da Pesca Tradicional no rio
Tejo, em Ortiga-Mação
Autor: João de Matos Filipe
Desenhos: Arq. Elsa Severino
Fotos da ilustração interior: João de Matos Filipe
Edição: O MIRANTE - Rua 31 Janeiro, 22 - Santarém
Impressão: EUROPRESS - Editores e Distribuidores de Publicações, Lda
Tiragem: 750 Exemplares
Depósito Legal: 352744/12
ISBN: 978-989-98138-1-6
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Equipamentos e aparelhos utilizados nas artes da pesca
1.2 ARTES DA PESCA TRADICIONAL
Como já referimos, são diversos os meios utilizados tendo por objetivo a captura do peixe.
Naturalmente, os aparelhos utilizados correspondem tecnicamente às exigências colocadas por cada um dos tipos de pesca.
Daí, podemos mesmo dizer que o método e o equipamento utilizados dão o nome à arte de pesca praticada. Iremos, de seguida, abordar algumas das artes de pesca mais frequentemente praticadas, a saber: com varela; com tarrafa; com cana (equipada com sedela); com tresmalho (ao lanço e à tancha); com redão; com nassa e côvão (armadilha).
1.2.1 – PESCA COM VARELA
A pesca com varela conhecia o seu grande período anual, a partir das primeiras cheias do inverno (por norma, aí pelo mês de dezembro) e prolongava-se até junho.
No período inicial, procurava-se capturar o sável e a lampreia, depois apontava-se mais para a saboga, época que se alongava, como já deixámos escrito, até junho. Era, aliás, muito famosa e esperada a boa e gorda saboga junha.
Para lá de se praticar nas pesqueiras, também pode ser praticada armando-se a varela em barcos picaretos ou em recantos naturais que, por força das pequenas penínsulas da margem, apresentem condições de corrente e remanso idênticas às obtidas artificialmente com as pesqueiras, como atrás descrevemos.
Pelo que se infere, para pescar com varela é necessário ter-se disponível: a varela propriamente dita, a rede adequada para a equipar, uma pesqueira com todos os elementos estruturais necessários, eventualmente um barco picareto que substitua a pesqueira ou mesmo um espaço de rio que ofereça condições naturais propícias.
«A fixação da varela à pesqueira faz-se no aro por três ou mais cordas denominadas vergueiras e pela corda do contro, de modo a permitir o movimento de eixo, para meter a Varela a pescar – dentro da água do rio – e levantá-la para colher o peixe da rede – fora de água. (…)
(…) A rede é cozida à varela pelos dobrados - malha mais larga e reforçada em que termina a boca da rede -, pelas varas e contro, com a singideira – cordel de especial tecedura para o efeito.
A varela depois de lhe ser cozida a rede, arma-se na pesqueira amarrando-a pelas vergueiras e corda do contro, dando-se-lhe, sobretudo, àquela a folga necessária para o seu conveniente manejo e segurança, tendo em atenção o abrir da revessa, a força da corrente do remanso, a altura da água, a borbulhagem, os ventos, etc.
Convém, também, aplicar-se o guarda-redes – cordel em diagonal amarrado na vara superior a uns 0,20 m do contro e na inferior a uns 0,50 m do mesmo, para evitar a fuga do peixe de movimentos rápidos e velozes, pela parte da rede que sai da água em último lugar.
A varela pode ainda armar-se sobre um bote aproado à corrente do remanso e poutado «ancorado» com
pouta (pedra), à proa e popa segundo a direcção da mesma.»
Outros autores (Ferraria Moreira, F.M.; Seixas, S.I. & Dias, S.M., s.d.) que procederam ao estudo das artes da pesca no rio Tejo, na esteira de Baldaque da Silva, referem-se à pesca com varela de modo menos pormenorizado, mas, ainda assim, numa descrição empírica bastante interessante sobre a sua prática e da forma como tecnicamente funciona. Enfatizam a singularidade de se tratar de uma arte que só encontraram em Ortiga e disso mesmo dão testemunho, ao escreverem o seguinte:
«Uma arte apenas encontrada em Ortiga foi a varela: consiste num saco de rede entralhado num arco de madeira de forma semielíptica. Do fundo deste saco parte um cabo cuja extremidade está na mão do pescador. Quando o peixe entra no saco, ao tocar no fundo deste, o cabo é esticado e o pescador sente. Puxa então a rede para fora de água e retira o peixe que nela ficou preso (BALDAQUE DA SILVA, 1891).»
Pelo que nos foi dado a saber, e porque se trata de uma arte de pesca perfeitamente adequado às condições naturais da zona, a sua prática ter-se-á estendido para montante, até Belver e Amieira do Tejo.
1.2.2 – PESCA COM TARRAFA
Legal até há alguns anos atrás, era um tipo de pesca muito utilizado dado ser possível a sua prática, indiferentemente, a partir dos barcos picaretos ou desde a margem aproveitando os recantos do rio mais propícios e de águas mais brandas.
A utilização a partir de um barco picareto implicava trabalho de equipa.
Enquanto um dos pescadores preparava e lançava a tarrafa,
nos locais e recantos do rio que tinham por mais indicados, o companha ia aos remos. Ou seja, preparava cuidadosamente a aproximação a esses recantos do rio, fazendo deslizar o bote de marcha à ré, ciando muito de leve, silenciosamente e com movimentos dos remos apontava mais para a direita ou mais para a esquerda, seguindo sempre a sinalética do lançador que ia, por norma, à ré, no buraco do trapeiro ou em cima do leito do bote.
É necessária muita habilidade para lançar as tarrafas e, em especial, no que respeita às de colheita e às de meia colheita, muita força, dado que são muito grandes e bastante pesadas. Na terminologia local, para as lançar um indivíduo tem de ter peito para isso.
1.2.3 - PESCA COM TRESMALHO - lanços e companhas
Utilizando o barco picareto e o tresmalho, o rio era batido pelas companhas que procediam a uma metódica e bem programada execução das ações de pesca. Como é evidente e porque o rio não é de dimensão ilimitada, bem pelo contrário, foram criados pelos pescadores, os designados aferidos. Os aferidos correspondiam, nem mais nem menos, que a setores de rio predefinidos como zona de pesca de cada companha. Deste modo, procuravam e conseguiam não colidir, entre si mesmas, nos seus atos de lançamento do tresmalho nos locais e áreas mais propícias do rio. Ou seja, na execução dos lanços.
«Os lanços eram espaços do Tejo, estrategicamente estudados e partilhados entre as companhas de pescadores. Havia quatro“lanços de amarração” (dois barcos levados pela corrente - um por cada margem do Rio - amarravam as extremidades da rede): Revessona, Canito, Cano e Morouços. Os outros eram “lanços à bóia” (um barco numa das extremi- dades da rede e uma grande bóia de cortiça na outra, levados ao sabor da corrente): Brando, Barreira, Junceira, Filipa, Salgueiros, Craveira, Aroeira, Mingalhão, Mansinha, Comboio e Castanho. Estas tarefas eram tarefas diurnas, quando as águas do Tejo iam turvas. Mas eram tarefas nocturnas (os peixes também têm olhos…), quando as águas do Tejo iam límpidas.
Eram muitas as companhas (todas constituídas por familiares) de pescadores profissionais, em Ortiga:
- Famílias Vermelho
- Manuel Vermelho e filhos (Quem não recorda o último destes “moicanos” – o Simão?...);
- Joaquim Vermelho e filhos;
- João Vermelho e filhos.
- Família Mariquitos
- Manuel Mariquitos e filhos.
- Família Alexandre
- Raul Alexandre – o Solapa – e filho.
- Família Sequeira
- Daniel Sequeira e filhos (quem não recorda o Jaime - o histórico “Chata”?...)
- Família Parente (Covão do Surdo)
- José António Augusto Parente e filho.
- Família Parente (fragateiros)
- Evaristo Parente e o irmão Joaquim
- Família Abelho
- João Abelho e o filho Manuel - o Siboque -, pai do pregador “Evaristo das Carpas” e do tétrico Rafael.
As mulheres também participavam, muitas vezes, na faina. O mundo destas gentes era o Tejo. Quantos dos meus velhos amigos não foram concebidos no aconchego do leito desses típicos barcos de pesca,
com a Lua a espreitar pela trapeira?!...»
Cada companha era formada por dois elementos que constituíam a equipagem do barco picareto. Um ia aos
remos e o outro, desde o buraco do trapeiro, preparava, lançava, coordenava a ação do tresmalho no seu movimento rio abaixo e transmitia orientações ao companheiro que ia aos remos, no sentido de acertar a posição e a velocidade do barco com a posição e os movimentos do tresmalho.
1.2.4 – PESCA COM REDÃO
A pesca com redão exige um barco picareto sem leito e um tipo especial de rede, em
forma de saco tal como a da varela, que é montada numa vara
– o pau do redão - instalada na ré do barco, apontando para o lado do mar, com o comprimento variável de 8,00m, 10,00m ou 12,00m originando uma boca de rede muito maior que a de uma varela.
A abertura, o fecho e a recolha da rede assentam na ação do sarilho que trabalha em sistema com uma roldana fixada na extremidade da vara e muito em especial com as três ou quatro poutas que, presas ao entralho inferior da rede que fica dentro de água, mantêm a boca do redão aberta, mas que pode ser fechada, muito rapidamente, pela ação directa do sarilho logo que o pescador, ao sentir nos tentos batida de peixe, aciona a manivela.
Na pesca com redão, procede-se ao aproveitamento da corrente do remanso, poutando o barco em posição perpendicular à pesqueira, no enfiamento do último degrau tocado pela água, ao estilo da varela, mas ocupando um espaço de pesca mais ao largo que esta.
1.2.5 – PESCA COM CANA
Desde qualquer local da margem ou de pesqueira que oferecesse um bom pesqueiro era muito comum e para a comunidade ortiguense quase que universal, o gosto e a prática da pesca à cana, principalmente quando decorria a época da saboga.
Também neste tipo de pesca, o peixe capturado funcionava como complemento no contexto da economia familiar.
Até há não muitos decénios atrás, com uma cana comprida e resistente, cortada num
qualquer canavial dos ribeiros da aldeia, equipada com uma sedela, sendo esta constituída por um fio de algodão resistente a que numa das extremidades eram ligados dois ou três palmos de coco (nylon) para atar o anzol e em que era colocada, em condições de ser movida ao longo do fio, uma boia de cortiça com cerca de 0,13m de comprimento, talhada manualmente e calibrada com fita de chumbo, também esta trabalhada manualmente. Este conjunto do fio de algodão e do coco devia ter, no máximo, o mesmo comprimento da cana. Mais recentemente, as canas equipadas com sedelas cederam o lugar a varas de carbono e carretos de última geração, mas, como noutras épocas, obedecendo sempre ao mesmo princípio: se se ocupava pesqueiro numa pesqueira e chegava o proprietário do dia, “cana às costas” e vamos procurar outro local de pesca.
O início, muito precoce, da pesca à cana por parte dos membros da comunidade ortiguense, contribuía também, muito fortemente, para esse apego às questões, vivências e oralidades que envolviam o rio.
Os saberes transmitidos, atentamente escutados e gostosa- mente “bebidos”, no âmbito das conivências criadas entre mais velhos e mais novos, fosse entre avós e netos, pais e filhos ou vizinhos idosos e miúdos filhos de outros vizinhos, tendo por objetivo final, por exemplo, a ida em conjunto à pesca da saboga, eram, a um tempo, o dia a dia da comunidade e a sua maior riqueza enquanto reforço da identidade coletiva.
A pesca ao remolhão era um outro tipo conhecido de pesca à cana. Não tão frequentemente praticado, visava pescar a enguia e consistia precisamente na utilização de um conjunto de minhocas enfiadas ao comprido, num fio. Para o efeito, recorria-se a uma agulha de costura. Enrolando-se o colar de minhocas sobre si mesmo, a pontos de formar um molho, este era ligado a um outro fio que estava preso à cana e com o comprimento desta. Lançado o molho de minhocas à água, quando o pescador sentia os movimentos da(s) enguia(s) a tentar(em) comer as minhocas, puxava rapidamente o aparelho para dentro do barco ou, se estava a pescar da margem, para dentro de um qualquer recipiente, por norma um guarda-chuva aberto, virado ao contrário e espetado no chão, para dentro do qual a enguia caía, ao soltar-se das minhocas.
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